6.29.2008

vai gritar

daqui a nada vais ligar outra vez. o telefone, esquecido na quina da mesa, vai gritar o teu nome. há pouco, estava ele mais saudoso que eu. agora, sinto-me outro, cheio de comunicação.

verdes

aqueles verdes que a vista alcança de memória ajudam a passar a lentidão do dia. quase anunciam um escuro suave.

frescura

agora, a luz enfraquece e, muito lentamente, arrefece ligeiramente o esquecimento. lembro-me melhor da tua frescura, é verdade.

telefone

quando telefonares, não estou. o ar quente enlouquece a voz e receio dizer disparates novos.

por enquanto

pingas de um suor físico, a escoar luz. água, água fresca e noite longa. pedidos recusados, por enquanto.


infância

um refresco de tangerina azul, como nos tempos em que misturávamos as cores, vinha a calhar.

calor

está um dia quente, quase brasa. mesmo que seja da lembrança se ti, desculpa, vinha bem uma brisa sombreada.

fitas

saímos do cinema a correr, para recapitular a fita em treinos caseiros. foi pena falhar aquela cena mais íntima. por certo, devíamos ter outro treino de actores.

humor

quando teimaste no nunca mais achei que uma brincadeira é sempre bem vinda. agora, que o tempo me castiga, falta-me o desejo de humor.

desejos

e sonhamos, nas horas perdidas do escuro da noite, que o dia não virá tão depressa. ele é desejado, mas custa mudar cada estado em que nos recolhemos.

6.27.2008




Depois da noite...

Quando as gaivotas traçam o céu
Céu azul cinzento, de tarde finda
Imaginava-te eu, antes desse véu
Que esconde mais saudade, ainda

Tinha receio d’escancarar a descoberta
Que o pudico é outro nome de enlevos
Se da sonolência nossa, algum desperta
Deixamos de saber encobrir os medos.

Assim, deixo que as gaivotas dissipem,
Que a noite chegue, eterna conselheira
A consolar os fantasmas que a habitem
No ar melado da surrealista cavaqueira

Amanhã, o Sol vem estalar o tempo
O calor suará dos corpos fatigados;
Voltamos a esperar a noite, advento
Dos amores, repetidos de cansados.

6.22.2008

O Verão da Francisca

Francisca perguntou se chegara o Verão.
Trazia longas tranças nos cabelos espiga
Eu olhei-a, lento a sair-me da distracção
De um poema; mas ela era minha amiga

E disse-lhe a verdade: não reparei
O tempo vinha triste, descontente
Como saíra, também logo eu entrei
E não atentei em nada de diferente

- Mas olha que sim, sinto-o no corpo
Teimou, deitando olhos de azul vivo
- Se assim, Xisca, conclui-lhe absorto
Nem virá; afinal preferiu ficar contigo.

comboio

cansa empurrar o comboio ao longo dos dias afadigados. pensar que se fica em derradeiro. resta mudar a direcção ao conjunto.

6.21.2008



6.18.2008

Rir e sonhar

Tenho saudades daquele tempo
Em que corrias atrás de… nada
A cabeça a beber o som do vento
E o mundo ali parado; e tu parada

Pois não eram precisos passos
Nem força, suor, ou a correria
Nossos olhos eram os espaços
De se sonhar o voar da fantasia

Passávamos as tardes no baloiço
Só a balançar os olhares risonhos.
Hoje, a cada acordar, ainda o oiço:
Dizias ser só isso o rir dos sonhos.

6.15.2008



libertação

Um sonho caminha na minha tarde de ânsias
E deixa traços, rastos das memórias passadas
Confundo o que é só meu e das dele errâncias
Como se ao olhar o sol visse tardes molhadas

O sonho diz haver uma sereia junto ao mar
Pintada naquele azul tempo que eu esqueço
Que por socorro ecoa nos rochedos a gritar
Dizendo que não correndo a vida desmereço

Que sou só eu, só eu, o quem que a liberta
Pois também fora eu o quem que a prendeu
E se presto não vou, galope alado, pela certa
O seu grito d’alerta, quando chegar, morreu

esperança

vinhas por aí, descendo a rua que o sol já desleixara. entreaberta de esperança, cuidando que os picos luminosos que a escuridão consentia não eram pirilampos, mas seriam os olhos amados da sua lembrança.

6.14.2008



carta

a carta que não recebeste dizia coisas temíveis, talvez fruto da minha insónia. os correios devem acautelar as desgraças. são pagos para evitar que o mundo piore.

discussão

a discussão era só uma maneira que construir espaços. espaços num tempo morto, a aguardar conquistas inteiras.

múltiplo

percorríamos os caminhos, divididos em mentes separadas. as sombras ajudavam a recriar as nossa composições.

Ao Pessoa, pessoa inesquecível


A um grande génio


120 anos de lembrança


Desassossegos

"Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez" - B. S.

Desassossegos

"Benditos os que não confiam a vida a ninguém" - B. S.

Desassossegos

"Cada vez que o meu propósito se ergueu, por influência dos meus sonhos, acima do nível quotidiano da minha vida, e um momento me senti alto, como a criança num balouço, cada vez dessas tive que descer com ela ao jardim municipal, e conhecer a minha derrota sem bandeiras levadas para a guerra nem espada que houvesse força para desembainhar" - B. S.

6.08.2008

cidade aberta


por um fio


pela areia

às vezes, uma onda abusadora, deitava pela areia os castelos erguidos. eles voltavam à empresa, sorridentes e desafiantes.

catraios

os catraios construíam castelos de areia junto ao rebentar do mar, desafiando o universo com pequenos truques.


mãe mar

Quando fores velhinha e de cabelo branco
Continuarás a sentar-te feliz junto do mar
No banco onde sempre t’espreito de espanto
E ver-te é um exercício inteiro de sonhar.

Os dedos já falharão os traços de artista
Com que me pintaste o tempo toda a vida
Ao areal e ao verde não chegará a mesma vista
Porque foi comprida a tua missão cumprida.

Temo a saudade de olhar o banco, apenas
E ver-te igual, mas sem te ouvir a voz
Ainda que no olhar m’escrevas poemas
A dizer que os dois nunca ficaremos sós.

Cem anos que eu vivesse te sentiria
Em cada instante que fecho os olhos.
É impossível não respirar a maresia
Que contigo se mistura nos meus sonhos.


netos

a mulher do mar, enfeitada de negros, deixava o cabelo dos netos amaciar-lhe as rugas das mãos. de quando em vez, sorria-lhes histórias velhinhas que lhes enchiam a alma.

ímpetos

os pescadores partiram há décadas daquele mar, procurando cardumes nas terras fora de vista. com saudade, regressavam em dias parados e contemplavam a bravura das rochas, sustendo ímpetos de areia e onda.

infância

o azul do mar, naquela praia deserta de gentes, fazia brincadeiras com a espuma clara. ao longe, a confundir a vista, as gaivotas sorriam daquela infância.

nuvem

e as nuvens prosseguem, cada vez mais pequenas e envergonhadas.

lua

a lua, essa mesma, há muito que se deixou de reflexos. contenta-se com o esconderijo do dia.

regresso

o sol regressa aos ermos do horizonte, cumprindo a tarefa de sempre. os homens encolhem os olhos, mas atarefam a esperança nos novos dias.

a M S-C

Teus olhos espelhavam vontade de céu
Em disfarce temporário aqui em terra,
Encoberto em sons de poemas como véu
Que todo abre ao sol e abrasando ferra

Um pouco menos luz, eras humano
Um pouco menos azul, só eras Mário
Mas da vida fizeste sudário em pano
Que disfarçava o calor de teu solário

Só a quem lê faltará o golpe de asa
Pequenos ao tamanho de tanto além
Ficámos e ficamos nós aqui aquém
Só memória tem luz da grande brasa

B A 1

Estás a confundir os passos, a cada passo. Três minutos certos ultrapassaram a uma da noite em Nova Iorque. Contas dez para o lado Norte, contas mais dez para Sul, e só aí tiras as mãos dos bolsos. Dizes cem, duzentos, trezentos, quatrocentos, em vez de um, dois, três, quatro. Ensinaram-te que, assim, há mais precisão na correspondência com os segundos. Respirar fundo na contagem sul e voltas a recolher as mãos. Notas que estão suadas. Trinta segundos. Tens um relógio TAG de 21 quilates. Quando o pensas, pensas em 21 gramas. È um relógio precioso e preciso. Só que não contar ia ferver-te mais os pensamentos.
A meio da rua, no passeio do teu lado direito, está um andrajoso que cobre a noite com plásticos e atenua o frio da laje nos cartões que já enrolaram um frigorífico.
Neste momento, olha-te. Parece-te a ti que faz um subtil sinal de empatia, mas não faz. No engano, és tu quem o olha. Pensas uma certeza, Aquele homem não tem mulher. E apressas o passo, perdendo-te no quatrocentos.
A entrada do 315 continua hermeticamente fechada. É um prédio luxuoso de doze andares. O teu, com uma vista soberba, é o último, o mais alto. O quarto é do outro lado.
A tua mulher é loura, tem um metro e setenta e um e olhos esmeralda. Vale o peso em ouro. Tu tens a certeza – embora te repitas que é impossível ter certezas absolutas – que ela está na cama. E que está na cama com quem bem sabes. Irremediavelmente.
Voltas a olhar a porta e desvias o olhar para o mendigo. Passaram sessenta segundos, se tanto
.

pareces

Realiza-se no dia trinta deste mês
O lançamento dum livro no prelo;
Conta a história de uma vida a três
Que é a vida da mulher d’amarelo.

Logo pensam os puristas, credo…
Isto bem cheira a lânguida ousadia
Os outros, surfistas, vão mais cedo
Porque lhe conhecem já a fantasia.

Não há nada de especial no enredo:
É a mulher dos três chapéus de coco
Que tão viva aos homens deixa medo
E se mantém em vida a respirar pouco

É uma mulher desconforme e alegre
Que dispara em todas as direcções:
Avança pelo caminho que não mede
A estilhaçar novos e velhos corações

Claro que o poema poderia sê-lo
Mas o amarelo é cor bué garrida.
Fica a rima fraca, não conseguida
Pois mais interessa bem parecê-lo.

Pareces…

muita cor

Deixa-me juntar os lábios ao teu respirar
Deixa-me espreitar, e ver-te, dormitando
Que na vista fica uma desenho d’encantar
Com tons d’amor com que te vou pintando

Não acordes, Sereia, que não vemos o mar
Temos dele uma ideia, mas é do tempo ido
Quando nos dizíamos, Haveremos de voar
(e, olha, eu agora sei que isso foi cumprido)

Cada qual galgando nas asas do outro
Loopings em glória, traços da certeza
De o pensar de novo, de novo absorto
Olho-te o encanto a encarnares beleza

Se pudera pintar o gesto que nem fazes
(escasso era o arco íris que então faria):
A cor que futurava na idade dos rapazes
Milhões de luzes não diriam o que sentia

Cantando à noite

A noite caía, de uma teimosia imberbe
Obrigando-nos a aceitar o destino dado
A tua resistência, disse-o, de nada serve
Embora eu prometa continuar a teu lado

Com o escuro vieram essas formas invisíveis
Que nos assustam só pelo seu lado de existir:
Aquelas que gritam as promessas impossíveis
As que entretêm verdades, apenas para mentir

Acordámos os dois um pacto de silêncio
Fartos de tantas vozes roucas das ilusões
Das que teimam ensinar o que não penso
Pensando transformar carne em corações

Mas somos fracos, sós, contra este mundo
Que a todos quer ensinar todos os verbos
Que nos não larga da vista um só segundo
A pensar que nos sentimos os seus servos

Ainda assim, vamos, lado a lado
Que o escuro recue: iluminamos
No tempo que o braço não é dado
Fingimos ouvir, mas só cantamos

Esta cantiga fútil, mas toda inteira
De dizer não aos medos ou aos ais
Cantada assim, nesta fraca maneira
Ouve-se longe, como hinos siderais


6.01.2008

eu sei

Eu sei, perco a compita ao olhar o teu olhar
que parece perfumado das pétalas das rosas
e não consigo desenhar poemas nem prosas

Agora resta-me esta escassa força de tentar.

Trouxe o arco-íris ao pincel das cores
quadratei o círculo para melhor te ver
mas o esboço só dava traços a tremer
e eu imaginava a ti melhores amores.

É um cenário nebuloso a paciência
Caminhar o caminho, único consolo
Que pouco luz no muito que imolo,
Mas que me sobra de última ciência

Vou esperar venturas no longe futuro
Certo de nada mais ter a acrescentar.
Vivo por aceitar que um teu sussurro
Possa ser um verbo acabado em mar